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AmparoMal o dia amanheceu e dei de cara com os dois no pátio, ansiosos e felizes; só um ex-interno pode contar o que representam duzentos e dez dias da sua vida dentro do programa de recuperação para moradores de rua aqui na Missão Vida. Penso na luta diária para oferecermos o melhor que temos e somos a cada um; desde o alimento variado, bem feito e abundante à roupa de cama, bem lavada e com cheiro bom e banheiros decentes, (acho que sou o único no mundo a levar visitas pra conhecerem os banheiros novos, mas eles ficaram muito bons!); sou grato por estar aqui, mesmo figurante.

Há uma angústia comum a todos nós que vencemos, com muita ajuda a dependência química e os hábitos ruins, a angústia de sabermos o que vem depois; desde que o Rev. Wildo dos Anjos, fundador da Missão Vida, autorizou o funcionamento da Reintegração social aqui, tenho me alegrado com a alegria desses irmãos que voltam ao caminho afetuoso do trabalho.

Na manhã desta quinta feira dois ex-internos da Missão Vida de Brasília começaram vida nova, estão trabalhando em estabelecimentos comerciais de amigos meus; depois de tanto tempo vivendo sem razão nem rumo, esses dois irmãos passaram pelo programa de recuperação, durante sete longos meses, dias difíceis e didáticos, pois que hábitos bons, esses aprendemos devagar.

Eles são vencedores, contra os vícios e hábitos ruins, venceram, não sem esforço e dor, a abstinência e delírios, venceram ainda a vontade contínua de voltar às ruas, aprenderam a sonhar com um tempo novo, vencendo a si mesmos e a tudo que lhes afligiu a alma desde o dia em que decidiram sair de onde estavam e vieram até nós para caminharmos juntos em direção a um novo lugar social limpo e saudável, e caminhamos, duramente caminhamos.

Observando-os notei a expressão animada, estavam bem vestidos, com aquele olhar sério e honrado, característico de quem andou esses últimos tempos bem perto do Redentor, olhar firme e sorridente; saíram bem cedo pra conquistar o pão diário.

À tardinha passei em frente ao serviço de cada um deles, pra ver como estavam se saindo; mesmo de longe pude ver a dignidade devolvida em forma de labor. Não fui até eles, olhei de longe e constatei que a vida e o tempo novo lhes foram entregues, o caminho novo e suas implicações lhes pertencem; minha companhia e ajuda desde agora são dispensáveis, eles seguem daqui, eu também.

Sou um sujeito rude e de poucos amigos, isso eu sei, mas até gente assim recebe e sente o baque nessas horas, e até chora escondido dentro do carro, chorei um pouco, bem pouco mesmo e fui embora, feliz e só.

Andei matutando sobre o que sou e faço; gasto minha vida caminhando com homens que se tornam minha família, homens que chegam feridos, rotos, humilhados pela derrota cotidiana do álcool, das drogas e da violência das ruas; pessoas sem Deus e sem amor e que precisam ser tocadas, alcançadas pelo olhar inconfundível do Cristo que lhes reescreve as histórias, lhes devolve o riso.

Alguém disse outro dia que sou um “samaritano totalmente insano”, pois não pode ser normal trabalhar tão duramente e ainda andar por aí com um riso na cara repetindo que “Deus é bom, Deus é muito bom, Deus é bom demais”! (wga).

Samaritanos sempre seguem seu caminho, sempre há muito a ser feito, há sempre uma chance nova de reproduzir a graça de Deus na vida das pessoas; samaritanos não são bons nem ruins, apenas homens comuns, dispostos a caminhar ao lado de gente que ninguém mais quer por perto, nem a família, nem a igreja; missionários ensinados e preparados e prontos a servir a cada homem de rua disposto a mudar de vida como quem serve ao próprio Cristo.

Daqui da minha janela pude vê-los retornando do trabalho, uma bela cena, cansados e com um belo riso na boca; esse é mais um dia pra ser lembrado, junto com muitos outros. Sola Gratia!